Sobre o filme Pantera Negra: Quando a importância transcende a qualidade


Sejamos honestos: "Pantera Negra", analisando de forma técnica, é ótimo, e é um dos melhores filmes da Marvel, mas não é excelente. Há vários problemas ali.
O mais óbvio de todos é a computação gráfica, sobretudo no clímax, que prejudica um pouco a experiência ao afastar o que está acontecendo da realidade. Há um incômodo no CGI meio falso para o espectador de 2018, tão acostumado a excelentes efeitos visuais. Além disso, à exceção da ótima sequência na Coreia, não há nada muito criativo em termos de direção e cinematografia na ação do filme. Talvez isso se explique pela inexperiência do diretor, Ryan Coogler, no gênero puro da ação (ele fez um excelente trabalho em "Fruitvale Station" e "Creed"). Isso não significa que o filme não é bem filmado. Há uma cena que começa de ponta cabeça de uma forma particularmente inspirada, alguns shots são belíssimos e parecem propositalmente feitos para parecerem páginas de quadrinhos, além da beleza de Wakanda. Tenho um pequeno problema também na forma com que os fatos da narrativa são distribuídos. Há pouco espaço para coisas importantes e muito espaço para coisas não tão importantes assim (como a batalha final ser extensa demais enquanto sacrifica um pouco do desenvolvimento do excelente vilão que a trama tem - sobretudo se levarmos em consideração os fatores que abordei acima). O filme poderia ter ido um pouco mais longe em seu "enchimento" dramático e isso é palpável na forma final do roteiro.
Mas, em nenhum momento, isso tira a diversão, a beleza, a boa jornada do herói e, principalmente, a importância da discussão que "Pantera Negra" traz.
Começando pela narrativa em si, a jornada pela qual T'Challa passa até finalmente assumir permanentemente o trono de Wakanda possui a maioria dos passos da jornada clássica do herói. Ele já começa o filme com seu mundo chacoalhado com a morte do pai (que, caso você tenha vivido numa caverna nos últimos dois anos, morreu em "Capitão América: Guerra Civil"). A novidade da narrativa para nós, habitantes de um país ocidental, é a maneira como essa jornada se configura dentro das possibilidades que a existência de um país como Wakanda proporcionaria.
E é justamente em Wakanda, sua história, sua cultura, suas tradições e política que reside toda a originalidade do filme. Se T'Challa possui os mesmos conflitos internos de aceitação da "missão" que outros super heróis como o Capitão América ou o Homem Aranha possuem, ou possui conflitos parecidos com os que príncipes e herdeiros de tronos passam em diversas narrativas épicas, históricas ou fantásticas, na história do Pantera Negra você tem diversos elementos do contexto cultural do personagem que vão tornar essa jornada diferente das demais.

Enquanto reis e príncipes das histórias conhecidas precisam lidar apenas com seu povo e suas tradições, T'Challa precisa lidar com as complicações de governar um país que, para o resto do mundo é mais uma "nação africana de terceiro mundo", mas na verdade é o país mais rico e tecnologicamente desenvolvido do planeta. Enquanto super-heróis norte-americanos precisam lidar com questões das ruas ou do governo ou da polícia, enfrentando vilões megalomaníacos, psicopatas com traumas passados que os enlouqueceram ou bandidos de rua criados pelo sistema, o Pantera Negra precisa lidar com um vilão em crise de identidade que tem um ponto muito válido a provar (algo parecido com o que o Magneto é em várias de suas histórias com os X-Men, só que mais realista). Esses fatores tornam todo o conflito de T'Challa mais interessante e original que qualquer conflito heroico apresentado no Universo Cinematográfico da Marvel Studios até então.

Aliás, nesse sentido, Erik Killmonger como antagonista contribui de forma essencial para essa dinâmica. E por isso eu senti falta de mais espaço de tela para ele e seu ponto de vista - sem spoilers, isso faria seu desfecho na narrativa ainda mais impactante do que foi. Apesar de claramente levar seu propósito a extremos imaturos - imaturidade essa que leva Killmonger a desrespeitar e zombar de tradições que não podem simplesmente ser derrubadas e desrespeitadas sem ferir todo um povo - não há como não entender o lado do personagem e, até certo nível, concordar com ele.

Além dos principais atores da história, antagonista e protagonista, o filme também possui personagens secundários fascinantes, todos eles com conflitos, personalidades e pontos de vista fascinantes. As diferenças de pensamento entre Nakia (Lupita N'Yongo), Okoye (Danai Gurira), W'Kabi (Daniel Kaluuya) e mesmo M'Baku (Winston Duke) são interessantíssimas de se assistir e, embora dedique menos espaço do que deveria para essas discussões, o roteiro faz com que você pondere todos os pontos de vista e veja prós e contras destes. É incrível observar como personagens que não se antagonizam discordam entre si e ainda assim conseguem trabalhar juntos, colocando suas diferenças de lado - e aí eu incluo a participação, passiva, mas importante do próprio agente da CIA, Everett (Martin Freeman).
Nesse meio, a Princesa Shuri (Letitia Wright) parece indiferente - característica comuns em adolescentes conectados em tecnologia como ela - a todos os conflitos políticos e até parece ter preguiça das tradições mais ancestrais do seu país, mas é obrigada a tomar uma posição ao se ver num conflito iminente. E nem por isso ela deixa de brilhar menos: seu humor, sua personalidade "descolada" e inteligência fora do comum fazem dela uma personagem carismática que, certamente, caiu nas graças do público.
Acaba que no meio de todos esses personagens e conflitos interessantes, a sensação que eu tive foi que vi demais do Pantera Negra e seus movimentos e roupas legais, e de menos de todas essas nuances. Pessoalmente, no fim das contas, por mais bem feito que seja, T'Challa me pareceu o personagem menos interessante da narrativa e eu ansiei por mais dos outros.

Mas há outro aspecto importante que gostaria de abordar.Veja bem, eu fui uma das últimas pessoas que eu conheço a assistir o filme. E se você acompanha meus textos, sabe como eu sou engajado em questões raciais e sociais em geral. Mas ficava me perguntando se as pessoas não estavam exagerando no que se tratava da representatividade trazida pelo filme em si. Digo, eu sabia a importância do primeiro blockbuster de alto orçamento e sucesso garantido não só com um protagonista negro, mas com 90% do elenco composto por negros de pele escura (não apenas os de pele clara com traços mais angulares). Eu sabia da importância de mostrar uma cultura africana avançada e não relacionada apenas a pobreza e fome. Mas ainda assim, o pós-filme estava com um buzz gigante que eu questionei, mas só até assistir e me pegar empolgadíssimo e vibrando com o que eu estava vendo.

Não sei se quando criaram o super herói, lá no número 52 do Quarteto Fantástico em 1966, Stan Lee e Jack Kirby realmente queriam desfazer estereótipos a respeito da África ou se apenas pensaram que talvez fosse exótico a existência de um nicho altamente tecnológico no meio da selva africana - a simples leitura dos primeiros números em que o personagem aparece não responde essa pergunta. Mas o que Ryan Coogler e sua equipe fizeram no filme é, definitivamente, um trabalho de desconstrução de imagem fantástico. "Pantera Negra" pode facilmente se encaixar num movimento artístico chamado afrofuturismo, que existe (com esse nome pelo menos) desde os anos 1980, mas que só foi descoberto por mim (e por quase todo mundo) recentemente, em partes por causa do filme da Marvel. A ideia do afrofuturismo é justamente desvincular do imaginário popular a imagem de miséria e subdesenvolvimento do continente africano. E o filme faz isso de maneira magistral, ao tentar construir uma civilização africana que nunca foi colonizada e que se desenvolveu sem a influência imperialista ocidental - para quem não sabe, as civilizações africanas poderosas e avançadas da Idade Antiga não se resumem a Egito.

Há essa ideia preconceituosa de que a tecnologia e os avanços da humanidade só se desenvolveram pela influência do império ocidental iniciado pela cultura greco-romana e a cristandade medieval e espalhada pela Europa, que se encarregou de levá-la ao resto do mundo. Mas Wakanda se desenvolve tecnológica e moralmente acima do restante do mundo - o mundo ocidental e também o mundo de algumas tradições africanas - e possui essa aura que é estranha aos olhos de quem cresceu vendo as culturas afro-descendente e africana sendo diminuídas, demonizadas e vistas como primitivas.

Em Wakanda, a tecnologia e a ciência não sobrepujaram tradições e religião, ambas convivem de forma complementar, como manda a percepção holística das culturas africanas (no plural sim). Lá a estética dominante não é europeia, os trajes formais não são black tie, as roupas casuais não se resumem a jeans e camisetas de malha. Lá, os negros não aprenderam que seus cabelos eram inferiores em relação aos cabelos lisos. Lá as mulheres não aprenderam a ser usadas, objetificadas, submetidas e diminuídas pelos homens - o principal exército wakandiano é composto apenas de mulheres, toda a tecnologia da nação é desenvolvida e comandada por uma mulher e a melhor espiã que eles possuem é a ex do príncipe, que questiona o que ele pensa sem titubear e é respeitada por ele assim mesmo. Em Wakanda, as diferentes tribos mantém suas diferentes culturas de forma pacífica e harmônica debaixo de um mesmo reino - mesmo a tribo Jabari, que escolheu não viver sob o governo do Pantera Negra, possui respeito pelo reino como um todo. Há essa noção que nos parece estranha, do velho e do novo, do tradicional e do vanguardista, do ancião e do jovem convivendo juntos, crescendo juntos e lidando de forma tão saudável quanto possível com suas diferenças - ideia refletida na bela trilha sonora de Ludwig Goransson que, unida ao hip hop trazido pelo Kendrick Lamar, enaltece a cultura negra ocidental e também a cultura musical africana. Todas essas coisas são empoderadoras de uma forma que talvez poucas pessoas que não sejam negras ou mulheres consigam entender (talvez os indígenas entendam, e, devo destacar, que fiquei com muita vontade de ver algo parecido com Wakanda feito aqui no Brasil com a rica cultura indígena brasileira). É um manifesto não-agressivo, mas poderoso, de que a África, os africanos e os afro-descendentes, em suas diferentes culturas, não precisavam da colonização, do imperialismo, da catequização ou do mercantilismo para se desenvolverem. É uma declaração em forma de entretenimento de que a humanidade teria sobrevivido muito bem sem absurdos como a eugenia, a escravidão, o racismo e o machismo - estes ainda presentes na nossa realidade.

E não é apenas a diversidade e o poder das tradições africanas, tão plurais e diversas, que são representados aqui. Todo negro espalhado pelo mundo que tem consciência da cultura racista na sociedade atual, entende a importância desse filme. O teórico cultural e sociólogo Stuart Hall reconhece a importância da mídia, da cultura e das estórias contadas na construção das representações sociais e, consequentemente, na construção das identidades nacionais - que vão afetar a forma pela qual o indivíduo se vê na sociedade e como ele "descobre" o papel que ele cumpre nela.  Alguns acham que representatividade é apenas sobre ver pessoas parecidas consigo na tela de cinema. Sim, é importante, especialmente para as crianças, ter na mídia e na sociedade figuras positivas com as quais consiga se identificar. Mas também é importante para as pessoas brancas se acostumarem com os negros em papeis sociais que não se resumem ao escravo, ao bandido, à empregada, ao desempregado, ao segurança de shopping, ao militante, ao sofredor. Só assim, a imagem do negro na mente de todas as pessoas, de todas as etnias, se desvincula da negatividade que carrega por todos esses séculos. Por isso, além de Blade, o caçador de Vampiros, além de Spawn, o Soldado do Inferno, além de Luke Cage, além da Tempestade, do Super Choque ou do Lanterna Verde John Stewart, Pantera Negra é tão importante: ele mostra coisas que nos deveriam ter sido mostradas desde crianças, nos mostra possibilidades que nossa mentalidade formada por uma história contada pelo ponto de vista Europeu não conseguem conceber sem um pequeno empurrão.

E é por isso que eu digo, sem medo de errar: mesmo se fosse um filme ruim, Pantera Negra permaneceria importante. Apesar de tocar em diversas problemáticas relacionadas a questões raciais, sua mensagem não dita, não verbalizada, fala mais do que muito textão na internet ou artigos científicos que poucos leem. É um grito tardio e ainda solitário de afirmação da cultura negra e da cultura afro. É apenas um tímido primeiro passo em direção ao desejado pôr-do-Sol de Wakanda.

Comentários

  1. Eu achei a questão toda da representatividade sensacional. Não é comum ver filmes de heróis com essa abordagem. Além disso, é importante dizer que toda essa produção traz um roteiro incrível. O gráfico do filme é de cair o queixo, as cenas de ação são muito eletrizantes, os rituais simbolizando as tradições tribais africanas nos transportam para uma realidade totalmente diferente da nossa. Creio que pantera negra guerra civil é ótimo por suas atuações ótimas, como Michael B. Jordan, um vilão incrível. A forma como mesclam os efeitos visuais e a agregação do moderno com o antigo foi, sem dúvida, fantástico. Ou seja, ele consegue fazer os dois, unir qualidade com conteúdo

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