Afinal, o que faz uma boa adaptação de quadrinhos?



Eu já falei sobre esse assunto aqui no blog, no post de 10 coisas que fãs de HQ's PRECISAM saber sobre adaptações. Mas eu acho que chegou o momento de falar de novo um pouco sobre outra perspectiva do assunto que explicaria o motivo de algumas das opiniões que expus na lista.

Uma das coisas que sempre é repetida por fãs para fazer uma crítica positiva ou negativa sobre uma adaptação é a questão de "manter a essência". Mas o que é a essência. Recentemente, numa discussão sobre as adaptações do Homem-Aranha, perguntei a um amigo, o Wali, como ele definia a essência de um personagem. Ele me respondeu que é a ideia principal que o seu criador impôs ao personagem em sua criação e às vezes a essência de um personagem que durou mais tempo e formada a partir de suas várias interpretações. A essência de um personagem não seria apenas seu comportamento e código de conduta mas uma gama de coisas, como a própria manifestação da sua personalidade e a coerência desta em relação a toda a bagagem histórico-narrativa dele.

Já eu considero isso é um pouco mais simples em relação a adaptações de narrativas curtas -  livros, graphic novels, por exemplo - do que quando estamos falando de super heróis antigos da indústria de quadrinhos norte-americana, como personagens Marvel e DC.

E vou dizer o porquê.

Cada roteirista que pega um personagem para escrever uma fase dele, tem uma visão diferente daquele personagem. E não estou falando da visão dele para aquele personagem, mas da visão que ele tem do que os outros roteiristas anteriores a ele criaram.
Por exemplo, Chris Claremont leu os X-Men de Stan Lee e viu neles algo diferente do que Stan Lee havia visto, pois é assim que a arte funciona: uma vez que o autor a escreveu, ela não é mais dele, mas do público.
Existe sim o que o autor quer dizer que não está aberto a releituras e o público que tem um bom treinamento em interpretação de texto vai entender, mas ainda assim, as perspectivas SEMPRE serão diferentes - sobretudo quando esses personagens são escritos por roteiristas diferentes ao longo dos anos.

Quando um artista era leitor recebe aquele personagem para escrever sobre ele, ele traz essa visão de fã que já é diferente da visão do autor e ainda traz a sua própria assinatura de autor: os vícios, as características pessoais e um pouco de si mesmo, dos próprios conflitos, além de um senso de "atualização" (para se manter relevantes, os personagens passam a lidar com questões relativas ao tempo em que a história é lançada).
Essas mudanças trazem mudanças profundas inclusive em quem o personagem é. Scott Summers não virou Malcolm X do nada. Apesar de algumas coisas bem forçadas nesse processo, gradualmente os roteiristas de X-Men construíram o que o Bendis transformou na revolução do Ciclope.
E até agora eu estou falando apenas de mudança de roteiristas dentro dos arcos dos quadrinhos.

Quando a coisa vai pro cinema, existe um limite - o personagem precisa ser reconhecível como o personagem dos quadrinhos - mas existe ainda mais liberdade. Muitas vezes não é uma liberdade sequer voluntária, às vezes ela é obrigatória, dadas as diferenças essenciais de estrutura narrativa entre a arte sequencial (HQ) e a arte audiovisual (cinema/televisão).

Adaptações cinematográficas são complexas em sua própria natureza: muitas vezes um diretor e/ou roteirista está condicionado à visão dos seus produtores, outras vezes eles possuem liberdade total de trazer sua visão. Geralmente, no primeiro caso, a visão é mais comercial do que qualquer outra coisa, e no segundo a visão geralmente é mais artística (embora em filmes de estúdio sempre exista a demanda comercial, e diretores sempre possuem alguma forma de colocarem sua voz na narrativa).
De um jeito ou de outro existem vários cenários possíveis: às vezes uma adaptação é dada a um fã de longa data daquele material, mas muitas vezes ela é dada a um criador que irá conhecer aquela obra a partir do momento em que ele foi contratado para adaptá-la.

O fã vai escolher uma (ou mais de uma) fase preferida sua (que provavelmente será preferida de muitos). O que não é fã, vai fazer uma pesquisa livre da paixão de um fã e escolher uma história que ele considera adequada para o que ele gosta de fazer, a linha narrativa e a visão do personagem que ele considera mais interessante. Nesse processo todo, o personagem é transformado completamente e às vezes o público que é fã do material original dá sorte de que a visão que os realizadores dos filmes sejam uma visão parecida com a deles. E ainda assim, pode ser uma obra controversa, pois os fãs não são uma massa homogênea de pessoas com os mesmos gostos. Uns podem preferir os X-Men do Chris Claremont, outros do Grant Morrison, outros ainda do Joss Whedon - três visões completamente diferentes da equipe.

De uma forma ou de outra, a forma com que uma história é narrada, os personagens escolhidos, tudo vai influenciar na visão que você tem do personagem no filme e no quanto ele é parecido ou não com o que você enxerga que é a essência do personagem

Por essas e outras, que, como um fã de cinema, meu foco quando eu vou analisar uma adaptação, nunca é o que eu considero como a essência do personagem e sim se a visão que os realizadores do filme/série tem daquele personagem foi bem contada, bem narrada e bem capturada, independente do nível de fidelidade que eu considere ou não que ele tenha.

No fim das contas, até mesmo a resposta da minha pergunta no título depende de como o fã assiste um filme. Para fazer uma separação didática e simplista, fãs de quadrinhos, por exemplo, tendem a preferir Homem-Aranha: De Volta ao Lar aos dois primeiros filmes do Homem-Aranha do Sam Raimi (em 2002 e 2004), que por sua vez são os preferidos de fãs de cinema. Ao mesmo tempo, ambos ps grupos vão adorar Homem-Aranha no Aranhaverso, pois é uma adaptação muito fiel à mitologia do Miles Morales nos quadrinhos, ao mesmo tempo em que é uma excelente obra cinematográfica.

Há muitas coisas que satisfazem o fã de quadrinhos em De volta ao lar, que não são o suficiente para torná-lo um filme excelente para um cinéfilo, cujas expectativas de um bom filme são melhor supridas por um diretor como Sam Raimi. Há muita coisa que um fã de quadrinhos sente falta numa adaptação, mas que um fã de cinema acha que se existisse nos filmes não faria sentido algum (a máscara clássica do Wolverine, por exemplo). Ao mesmo tempo ambos podem concordar a respeito de Homem-Aranha no Aranhaverso, pois o longa de animação possui algumas liberdades que um live action não possui, e uma linguagem que aproxima o filme dos quadrinhos de uma forma que um live action jamais poderia. Falando em termos mais realistas agora, um fã das duas mídias pode pender mais para uma ou para outra e isso pode decidir qual das visões do Homem-Aranha ele prefere. Eu sou fã de quadrinhos, mas eu sou mais fã ainda de cinema, então eu tendo a favorecer um bom filme ao invés de um filme fiel.

Vou usar dois filmes medianos, não tão bem vistos assim pela crítica para exemplificar como funciona a minha opinião.
Eu li quadrinhos de Hellblazer (John Constantine) e li os quadrinhos de Watchmen. Na adaptação de Francis Lawrence de Constantine (2005) a aparência do personagem é diferente, ele mora em outro país, tem outra nacionalidade. Mas a profissão dele, sua personalidade  e o clima da história é bem fiel aos quadrinhos. Com algumas referências visuais bem fortes, inclusive. É um filme que eu gosto muito e me diverti vendo e me lembra muito os quadrinhos, mas sei que é um guilty pleasure cheio de defeitos e deixa alguns fãs mais conservadores bem chateados.
Por outro lado, o Watchmen do Zack Snyder, aclamado pelo público e massacrado pela crítica, visualmente e na ordem de acontecimentos do enredo, é quase uma reprodução quadro a quadro da graphic novel. Mas eu não acho que Snyder tenha entendido a essência da crítica dos HQs.
Enquanto os quadrinhos são uma crítica pesada à cultura do super herói (tanto o vigilante, quanto o superpoderoso) o filme parece uma releitura que até homenageia essa cultura. Isso além de apresentar inúmeros problemas cinematográficos, do elenco à narrativa visual - o filme, em grande parte, se escora na trilha sonora para estabelecer o clima das cenas, enquanto a cinematografia nada faz pra contar a história.
E eu poderia continuar com os exemplos e explicar as razões de eu curtir os filmes dos X-Men na Fox (não todos, claramente) mais do que a maior parte dos fãs de quadrinhos ou os motivos pelos quais eu não curto grande parte dos filmes da Marvel Studios como a maior parte dos fãs de quadrinhos curtem. Mas aí isso viraria um livro.

E qual o motivo desse textão, no fim das contas? Eu considero que a compreensão dessas coisas é essencial para que críticas e discussões entre fãs se tornem mais ricas e tornem a distância entre os cineastas, os quadrinistas e os fãs um pouco menor. É preciso entender que as artes, seja a sétima (cinema) ou a nona (quadrinhos), não apenas possuem linguagens e estruturas narrativas diferentes, mas públicos e autores diferentes que trarão visões diferentes dos personagens e, assim como esses autores precisam respeitar os fãs e o material original, os fãs também precisam aprender a entender e respeitar a visão dos artistas e o fato de que nem todo mundo entende um personagem ou uma história da mesma forma que eles.

Então a vibe é bem aquele meme: Bem vindo à seita! A seita que dói menos. Aceita que a gente não é dono da verdade sobre os personagens dos quais somos fãs. É isso.



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