Sobre o filme "Corra!": O filme é isso tudo SIM!



Um passeio no gênero: terror ou suspense?

Desde que tomei a decisão pessoal de não assistir mais filmes de terror (isso rende outro textão), abri duas exceções das quais eu não me arrependi. Uma delas foi o australiano "The Babadook", que é um excelente filme de terror, mas, mais do que isso, é uma fantástica metáfora à depressão decorrente do luto como vivida pelas pessoas na vida real - incluindo seu desfecho que, para muitos, foi insatisfatório.
"The Babadook" me lembrou de como o terror às vezes pode ser usado, não como puro entretenimento sádico para aliviar nossos medos reais, mas para reflexões mais profundas através do exagero e do absurdo das situações impostas. Lembro-me de ficar impressionado como a diretora Jennifer Kent foi feliz em demonstrar a percepção pessimista da personagem principal, em como as coisas parecem fora do lugar, exageradas e isso não é um ponto contra, mas a favor do filme: esses pequenos exageros expõem a situação crítica da mulher traumatizada pela morte do marido, cuja causa da morte foi um acidente que ocorreu enquanto ele a levava para o hospital, pois estava em trabalho de parto.
Esse ponto de vista da paranoia do personagem principal é usado exaustivamente nos filmes do gênero, mas poucos realmente usam de forma inteligente e perspicaz, como quando Roman Polanski resolve focar na paranoia da personagem de Mia Farrow em "O Bebê de Rosemary", levantando questões relacionadas à figura da mulher passiva e objetificada ou quando "Mulheres Perfeitas" (1975) satiriza descaradamente a misoginia e o machismo, ou ainda quando, em "Violência Gratuita" (1997/2007), Michael Haneke te choca e te incomoda com a violência, sempre filmada por ele "no lugar errado", usando a quebra de quarta parede para criticar os chamados torture porns (filmes como "O Albergue" e "Jogos Mortais") - inclusive no remake de 2007, que parece criticas a onda desse subgênero que se instalou de repente nos anos 2000 .
Essa característica não é exclusiva do gênero terror em si, mas sim da sátira.
A sátira expõe defeitos e incoerências de pessoas, instituições ou mesmo da sociedade através da ridicularização. Essa ridicularização é dada justamente pelo absurdo e exagero das situações.

E é aí que entra a segunda exceção que abri: o recente "Corra!" (Get Out), a estreia do comediante (!) Jordan Peele na direção.
Muita gente não considera filmes com a pegada paranoica de "Get Out" como terror. Há quem diga ser mais um suspense do que terror. A classificação de gêneros é sempre complexa. Pode-se dividir os subgêneros do terror por temática (sobrenatural, fantástico, slasher, gore/torture porn etc), mas há quem use os termos "horror" e "terror" para diferenciar dois grandes grupos distintos. Em termos simples, o horror te choca pela maldade vista em tela e te "horroriza" com o visual. Dentro do horror teríamos filmes slasher, gore e de zumbis. O terror, por sua vez, é mais assustador por lidar com medos humanos, sobretudo o medo do desconhecido, a apreensão, a paranoia e a sugestão, entrando aí os subgêneros do terror psicológico e sobrenatural.
Essas definições facilitam a conversa sobre o assunto, mas elas são erráticas. Produtos de teor sobrenatural podem passear entre o terror (O Bebê de Rosemary, Invocação do Mal) e o horror (Navio Fantasma, A Hora do Pesadelo). Ou ainda, podem unir as duas coisas em simbiose perfeita, como as duas primeiras temporadas da série American Horror Story. Há ainda certos subgêneros mais inusitados, como a sátira (o próprio "Get Out", "Violência Gratuita" ou "Mulheres Perfeitas"), o "terrir", onde entra o terror trash, feito pra ser mais engraçado e nojento do que assustador em si (exemplares mais "clássicos" como Uma Noite Alucinante e Arrasta-me Para o Inferno ou mais "trash" como Piranhas, A Bolha Assassina, Sharknado etc). Há também os que são paródias satíricas do gênero, cujo maior exemplar é a série "Pânico" criada pelo Wes Craven satirizando os filmes slasher dos anos 80, ou os que fazem a mesma coisa com uma pegada mais trash como "O Segredo da Cabana". Há subgêneros específicos demais, como o terror sobrenatural japonês, que possui suas particularidades, ou o chamado giallo italiano, que também possui características próprias. Ainda há filmes que não sabemos se os classificamos como terror psicológico ou se são dramas/suspenses com elementos de terror, como "Repulsa ao Sexo", do Roman Polanski, "Inverno de Sangue em Veneza" do Nicolas Roeg ou "Cisne Negro" do Darren Aronofsky, que são filmes focados em dramas de personagens que estão afundados em suas próprias mentes e sensações. Há também filmes que não possuem premissas com características comuns ao terror, mas sua estrutura narrativa e estilo visual os coloca dentro do gênero, como "O Homem nas Trevas", "Hush" ou a série "Uma Noite de Crime".

Outro fator a ser considerado é a reação do público. Em muitas discussões de fóruns, vê-se gente dizendo "ah, mas esse filme não é de terror, é mais um suspense" ou "um drama" ou "uma comédia". Isso se deve ao fato de que o medo e a repulsa, a paranoia e o que é incômodo muda de pessoa para pessoa. O que é assustador para um, pode não ser para outro. O que provoca horror em alguém, pode provocar risos em outro alguém.
O momento histórico onde as pessoas vivem também influencia muito. O clássico "Psicose" do Alfred Hitchcock chocou audiências em 1960 e foi, por muito tempo, considerado um filme de terror, mas hoje não assustaria muita gente e o consideramos apenas um suspense. As histórias de horror de monstros que assombraram gerações como "Drácula" de Bram Stoker, "O Castelo de Otranto" de Horace Walpole, "Frankenstein" de Mary Shelley ou "O Fantasma da Ópera" de Gaston Leroux, hoje nos parecem mais romances góticos, com uma ou outra cena assustadora, do que qualquer outra coisa. Com o ceticismo característico do nosso tempo, a ideia de monstro causa mais horror visual do que assusta. Muita gente considera clássicos do terror da era de ouro do cinema como "O Bebê de Rosemary" ou "O Iluminado" mais como filmes de suspense do que como terror em si, pois "não assustam". "Carrie, A Estranha" para muitos jovens que não tiveram contato com o cinema clássico é considerado um drama com elementos sobrenaturais e um ou outro susto. Outros clássicos como "O Sexto Sentido", "Os Outros" e "O Orfanato", são vistos por muitos como suspenses sobrenaturais e não terror, embora "Os Outros" claramente homenageie os filmes de terror sobrenatural dos anos 40 e 50.

O desconhecimento de todos esses subgêneros de um mesmo gênero, faz com que pessoas não entendam algumas propostas cinematográficas. Se você não entende o clima do terror clássico (ou romances góticos) do século XIX, dificilmente vai levar a sério a proposta de Guillermo Del Toro com "A Colina Escarlate", por exemplo - que realmente não é lá essas coisas, mas não pelos motivos que o povo geralmente aponta. E o mesmo acontece com "Corra!".



Sobre o filme em si

Para muitos, foi uma surpresa ver o comediante Jordan Peele, do programa de sketches "Key & Peele" anunciando um projeto de terror. Mais surpreendente ainda foi assistir o trailer com toda aquela atmosfera estranha e bizarra e perceber que ele trataria de questões raciais num filme de terror (ele já fazia isso com a comédia, mas na comédia isso é mais comum).

E o resultado é simplesmente fantástico.
Get Out é um daqueles raros filmes pequenos e despretensiosos, feitos dessa forma (e que nunca parecem grandes demais enquanto se está assistindo), mas são grandiosos em seus detalhes e minúcias - e temática. Nele, o excelente (ênfase  no excelente) Daniel Kaluuya interpreta Chris Washington, um fotógrafo negro que é convidado por sua namorada branca para conhecer os pais no fim de semana. Ele demonstra receio ao perguntar se os sogros já sabem que ela namora um negro. Ela dá a entender que não, mas diz que Daniel pode ficar tranquilo, pois eles não são racistas. O que, obviamente, se prova condescendente da parte dela.

A primeira qualidade que tenho para enaltecer a respeito do filme é o elenco. Além de Kaluuya, que é uma descoberta e tanto e está sensacional, temos a Allison Williams no papel da namorada, no qual a atriz faz um trabalho excelente com a voz, expressão e, principalmente, as escolhas que ela faz pra mostrar o lugar da sua personagem dentro do filme. Bradley Whitford e Catherine Keener estão excelentes como os pais da moça, Caleb Landry Jones caiu uma luva no papel do irmão esquisito. Lil Rel Howery está divertido e destaco aqui a Betty Gabriel que está simplesmente fantástica. O elenco é fundamental para que o filme funcione.

Em se tratando do desenvolvimento do filme enquanto um terror psicológico satírico, "Get Out" claramente bebe de fontes como "Mulheres Perfeitas" e "O Bebê de Rosemary" já citados acima, parecendo também homenagear esse estilo mais antigo de fazer terror: a construção gradual, o terror provocado mais pela bizarrice e sensação de impotência diante do desconhecido e do assustador do que por jumpscares fáceis e horror visual, a trilha sonora marcante e a pitada de humor satírico que torna tudo absurdo e exagerado de um jeito inteligente.

Aliás, falando em trilha sonora, esta merece um destaque a parte. O trabalho da trilha unido ao trabalho de design de som aqui é excelente. O tema dos créditos iniciais, por exemplo, é uma canção em suaíli (uma língua bantu) que diz: "Brother, escute nossos antepassados, corra! Corra para se salvar". E se você presta atenção em trilhas sonoras, vai perceber que ela se repete continuamente no filme em momentos chave onde ela funciona como um aviso para o personagem. E o trabalho de som é extremamente criativo nesse aspecto quando, por exemplo, utiliza o barulho de quando estamos mergulhados na água para dizer algo sobre hipnose em mais de uma cena onde a hipnose está direta ou indiretamente envolvida (se já assistiu o filme, veja mais sobre isso na sessão com spoilers). A trilha instrumental também remete a filmes de terror psicológico clássicos e evoca o sentimento de incômodo e bizarrice que permeia o filme.

O trabalho de fotografia e a movimentação de câmera são fantásticos ao estabelecerem o clima das cenas e contarem a história, e aqui é tudo sobre ponto de vista. Há momentos chave onde tanto o roteiro quanto a direção nos levam à nos aproximar do protagonista, à ponto de enxergarmos a história do seu ponto de vista ao mesmo tempo em que ele expressa o sentimento do público (como quando, diante de uma situação bizarra ele exclama: "what a f..."), mas há outros momentos em que somos afastados dele para olhar o quadro geral e ver um pouco (apenas um pouquinho mesmo) mais do que ele, para que gritemos o nome do filme "SAIA daí!". O filme não está interessado em te surpreender com um grande plot twist (se você for um pouquinho mais treinado em assistir filmes, o final pode ser previsível pra você, mas se você não sacar antes, será muito surpreendente), o filme está mais interessado em te jogar dentro do pesadelo do personagem principal. Há duas evidências de que o Peele não queria surpreender: a cena inicial, que já joga na roda o que vem por aí, embora não explique nada e a figura do Rod, que, assim como o próprio Chris, também é uma representação do público.
Ele é o personagem que, assim como o espectador, sabe desde o início que algo está errado e se antecipa ao protagonista. Alguns consideram a exposição investigativa do Rod exagerada e um recurso de roteiro cliché e óbvio demais, como se fosse para mostrar ao público o que está acontecendo. Da minha parte, tenho a impressão de que Peele pensou no Rod para SER a figura do público que sempre está um passo à frente do personagem principal, mas não pode fazer muita coisa por ele a não ser torcer para que tudo fique bem (e nesse sentido, há algo no desfecho do filme que é sensacional justamente por brincar com essa ideia). Mas o Rod também é minha única reclamação em relação ao filme: ao mesmo tempo que amo o personagem, ele é um alívio cômico desnecessário, que pende mais para o pastelão do que para a veia do humor satírico que o restante do filme propõe.

Ainda assim, essa interação com o público e a maneira como o enredo assume que o público vai identificar e prever os clichés de gênero é um dos pontos fortes do roteiro e da direção de Peele. E é aqui, no mar dos clichés do terror, que o filme encontra a genialidade do seu subtexto social.
Peele subverte todas essas previsibilidades e absurdos de gênero, transformando-as em críticas pesadas ao racismo, mais especificamente ao racismo não assumido, o racismo que se arrasta pela sociedade, o racismo do "eu não sou racista, tenho até amigos negros", do "preto está na moda", do "votaria no Obama de novo". O racismo não assumido, disfarçado de admiração, que diz que o negro deveria ser grato por ter nascido com tantos atributos melhores na natureza ao invés de reclamar por ser visto por baixo de diversas camadas de estereótipo, ser a maioria entre os marginalizados da sociedade e a maior vítima de violência. Aliás, o pano de fundo emocional do Chris não está ali apenas para aprofundar o personagem, mas também faz parte da discussão, falando sobre a impotência de uma minoria sócio-econômica diante de coisas que parecem ser maiores do que ela.

No roteiro do filme, as sutilezas da cultura racista e do sentimento do negro em relação à elas são escancarados de uma forma muito orgânica na história - tão orgânica que, há aquela pessoa que vai assistir e ao invés de enxergar a sátira, vai achar que o filme foi absurdo/fraco/non-sense demais. É fundamental destacar que, apesar de trazer uma mensagem, esta serve à história e não o contrário. O erro de muitos roteiristas ao criar uma história com uma lição ou uma crítica, é justamente fazer com que essa lição/crítica/mensagem seja tão central, que ela aparece de forma desengonçada, comprometendo o desenvolvimento da narrativa. Isso não acontece em Get Out. Embora o assunto do racismo seja o pivô da história, ele é orgânico e não parece forçado dentro da proposta satírica do filme. Aliás, a satirização de situações do dia a dia de um negro americano é muito bem feita. A maioria das situações podem ser reconhecidas por negros de qualquer parte do mundo, inclusive no Brasil, algumas poucas são muito específicas do contexto norte americano, onde as discussões raciais são mais ferrenhas. Mas para discutir melhor essas nuances mais sociais do filme, farei logo abaixo uma análise com spoilers para quem já assistiu.

Por agora, se você ainda não assistiu, coloque em sua mente que o estilo de filme que você vai ver é o que discutimos acima e CORRA, por que é um dos melhores filmes lançados no ano até agora - e um dos maiores triunfos também, com uma altíssima aprovação da crítica e um lucro enorme, já que, mesmo não tendo bilheteria de blockbuster, foi um filme baratíssimo.




ANÁLISE COM SPOILERS
Questões raciais e como elas ajudam a entender melhor o filme, caso ainda não tenha assistido, CORRA DAQUI rs

A primeira coisa que quero destacar nessa parte é o background emocional do Chris e seu trauma com o acidente da sua mãe. Inicialmente, a cena em que atropelam um veado parece apenas um jumpscare gratuito e um presságio, mas acontece que ela vem a ser fundamental, tanto para o desenvolvimento de Chris como protagonista, quanto para a discussão racial. A ideia da vítima abandonada, que ninguém cuida, e da pessoa que se importa com essa vítima ser impotente e não poder fazer nada tem muito a ver com as discussões que envolvem racismo e questões básicas inerentes à ela. Essa ideia da impotência diante da urgência é trabalhada de tal forma que o clímax e desfecho "tarantinesco" fazem total sentido e podem servir de metáfora ao segmento dos movimentos ativistas que se mostram mais agressivos. Alguns podem achar exagerado o personagem bonzinho que de repente se revela uma máquina de matar, mas a construção do Chris é a construção de alguém inerte desde a infância, alguém que sempre assistiu a coisa acontecer consciente que estava errado e nunca fez nada a respeito, mas de repente, ao ser colocado na mais absurda das situações, ele de repente acorda e sai atirando para todos os lados. Essa questão do "não deixar ninguém para trás" ecoa em sua decisão de, ao ver Georgina deitada no chão, ele se vê na obrigação de salvá-la, criando uma rima narrativa interessantíssima.

Um detalhe interessante: Chris ter que "colher" algodão do sofá onde está preso pra tapar os ouvidos e se salvar é ironia narrativa sofisticada, levando em consideração o histórico dos escravos nos campos de algodão nos Estados Unidos.

A cena da festa talvez seja uma das mais emblemáticas do filme dentro dessa discussão. A maneira como as pessoas, literalmente, avaliam Chris, as perguntas e afirmações carregadas de estereótipo e preconceito, tudo inspira a crítica ao racismo velado. Outro ponto a se notar sobre a cena: todos os brancos estão vestindo alguma coisa vermelha, Logan - a vítima do início do filme - veste tons pasteis neutros e Chris veste azul, mostrando na cena quem é quem, numa dinâmica de vítima/predador.

Vi diversas pessoas questionarem a motivação da família Armitage no filme para fazer o que fazem. A ideia é bem simples, na verdade: a história sobre o avô Armitage perder a corrida dos jogos olímpicos de Berlim, que foi vencida pelo afro-americano Jesse Owens, que "tomou" o primeiro lugar de um alemão. Owens sempre disse que Hitler, chanceler naquele tempo, lhe cumprimentou e lhe pareceu sincero, enquanto o presidente norte-americano da época, Roosevelt, sequer foi parabenizá-lo. O subtexto do filme - e a bizarra cena da corrida noturna do "Walter" - dão a entender que, ao ser vencido por um negro, o patriarca daquela família percebeu que não poderia subestimar a força física de um negro. O discurso final de Dean Armitage sobre sermos casulos, unidos à reação das pessoas na festa deixam bem claro que eles enxergavam algum tipo de superioridade física no negro, como se as atribuições tivessem sido distribuídas de forma errada. A forma como Dean utiliza as gírias e expressões típicas do gueto negro norte-americano, o contraste do comportamento do personagem Andre Hayworth (o maluco da cena inicial e da festa), o discurso na fita de apresentação do Coagula - seu corpo e nossa mente serão perfeitos, tudo dá a entender que, colocar o "cérebro branco" no corpo do negro, seria criar o ser humano perfeito.
Esse ponto de vista se baseia na objetificação, perpetuação do estereótipo e fetichização do negro, que são coisas que alguns interpretariam como "superação racial", mas que na verdade são formas de racismo. Os negros eram usados como escravos justamente por parecerem mais fortes e mais burros aos olhos dos brancos (teorias de que os negros tinham o cérebro menor foram discutidas em trabalhos acadêmicos e muitos líderes religiosos diziam que o negro não tinha alma). O negro sempre tem que ser melhor no sexo, ter os atributos sexuais mais avantajados (seja o tamanho do membro do homem ou das curvas da mulher), e sempre serve pra ser usado nesse sentido.
O filme retrata uma versão exagerada desse tipo de pensamento: "nós não somos racistas, até queríamos ser negros para sermos melhores nisso ou naquilo".
Uma ligação que, talvez seja coisa da minha cabeça, mas considero emblemática é a cena em que a namorada está escolhendo uma nova vítima, a namorada come os cereais coloridos separados do leite (branco), de forma extremamente metódica. Não consegui deixar de reparar que é como se ela comesse o cereal com leite, como todos os norte-americanos, mas não misturasse realmente, numa ligação superficial.

Além desses aspectos, o filme te dá dicas (e não são poucas) sobre o que realmente está acontecendo desde o início. Inclusive, numa revisitação ao filme, várias nuances são percebidas de uma forma que não foram à primeira assistida. Na cena em que Chris e Rose são parados por causa do atropelamento do cervo, Rose não está protegendo Chris da atitude racista do policial, mas evitando que os documentos sejam registrados antes que o rapaz desapareça.
A dica da motivação dos Armitage, por exemplo, é dada logo no início. Aliás, a primeira coisa a se notar a respeito do envolvimento da namorada é o fato de que os pais dela são claramente o tipo de racista acha "ótimo conhecer outras culturas" e que "vota no Obama", mas eles não demonstram nenhuma surpresa ou incômodo inicial ao conhecer Chris, como se não fosse uma surpresa pra eles que ele era negro. Mesmo que depois o pai não demora muito a se mostrar um pesadelo racial com todas as suas desculpas "pelo racismo" e o uso debochado de gírias.
Diversas conversas fazem muito mais sentido quando você reassiste o filme, justamente por que elas antecipam o que o enredo reserva para o final. Outra dica: Os três negros que foram "lobotomizados" que aparecem na história usam objetos para cobrir as cicatrizes. O caseiro está sempre de boné, a empregada sempre está consertando a peruca e o cantor de jazz está sempre de chapéu.
Sempre que um personagem já lobotomizado tem algum flash de lucidez, é ouvido aquele som de algo "afundando" na água, característico do lugar pra onde a mente vai quando é hipnotizada.

Controverso, pois muitos não gostaram, o final é a coroa do filme, ao meu ver e exemplifica perfeitamente tudo o que eu quis dizer sobre Peele subverter os clichés do gênero em prol da sua mensagem. Geralmente em filmes de terror, a chegada da polícia pós-clímax é sinal de alívio, mas pela primeira vez, e isso serve mesmo pra quem não pensa ou não concorda muito nas questões raciais, tememos a chegada da polícia. Afinal, temos um negro com as mãos em torno do pescoço de uma mulher branca. Qual é o cenário?
Chris sequer hesita ao se levantar com as mãos pra cima, sabendo conscientemente que seu destino já estava traçado. E essa cena resume toda a questão do subtexto.
Alguns prefeririam o final alternativo onde policiais brancos descem do carro e Chris acaba preso. Seria mais realista e mais sério. Mas adorei a decisão de Peele em dar ao filme um final mais leve e um respiro no sofrimento de uma etnia que sofreu por séculos a escravidão e que, ao falar, ainda hoje, não é plenamente ouvida, pois provavelmente será acusada de "vitimista".
Esse desfecho é um grande "dane-se, você está errado" esfregado na cara quem diz que o discurso em prol da causa negra nos EUA é baseada em vitimismo.
E "considere essa situação resolvida".


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